Aspectos jurídicos e práticos do fornecimento de cana.

Originação de cana é o processo pelo qual uma Usina Sucroenergética adquire a cana que será industrializada para a produção de açúcar.

Dentre as espécies de contratos que sustentam este processo juridicamente, estão os contratos de fornecimento de cana.

I) NATUREZA JURÍDICA

Embora a estrutura jurídica do fornecimento derive do tradicional contrato de compra e venda, ele possui amplitude ligeiramente maior, pois a obrigação do fornecedor não termina com simples entrega da coisa, pois deverá fazê-la de forma contínua e na cadência ajustada entre as partes, pois entendem-se que o produto objeto do contrato é essencial na atividade empresarial do adquirente (Usina).

O civilista Silvio de Silvo Venosa leciona que “o fornecedor não somente se obriga e entregar coisas durante certo período, como também a prestar um serviço, a fim de desenvolver e manter o funcionamento da empresa ou atividade do fornecido, fazendo com que os bens sejam entregues na forma, qualidade, quantidade e tempo oportunos”. (Direito Civil: contratos em espécie, 8 ed, 2008, pag. 464)

No segmento sucroenergético é comum que os contratos tenham período de vigência mais dilatado, que normalmente é de 5 anos, mas há casos que eles chegam a 20 anos. Há, ainda, algumas obrigações acessórias relacionadas à manutenção da qualidade do canavial, cadência diária/semanal de entrega e, em contrato mais sofisticados, à variedade a ser plantada, à não interferência no sequenciamento de colheita pré-ajustado e à manutenção das condições de colheitabilidade.

II) POSSE

A posse do imóvel não costuma ser objeto do contrato, que permanece integralmente com o fornecedor/produtor rural. Porém, se aquele determinado imóvel servir de passagem da Usina para acesso a outras propriedades ou for ser usado como depósito de foligens e resíduos industriais (p. ex.), é salutar que o contrato preveja isso expressamente.

III) OBJETO

O objeto do contrato, portanto, consiste na produção e fornecimento de um determinado volume de cana, podendo as partes definir uma quantidade exata (p.ex. 30 mil toneladas) ou um volume determinável, quando fica estabelecido apenas que será a totalidade de cana da Fazenda Santa Maria, no Município de Ribeirão Preto/SP (exemplo).

IV) PREÇO

Na precificação do produto, é comum as partes adotarem as regras do Regulamento Consecana, as quais devem ser de total domínio dos profissionais das áreas de Originação, financeiro, gestão de contratos e advogados deste setor.

Importante estabelecer uma importante premissa do negócio, que será mencionada nas linhas seguintes: o mais importante para a Usina é o teor de ATR da cana comprada, pois todo o restante é considerado “impureza mineral ou vegetal”.

O preço é o outro aspecto fundamental do negócio, existindo no mercado algumas formas tradicionais de fixação:

IV.a) ATR Relativo: é o método previsto no regulamento Consecana e considera, em síntese, o teor de ATR da cana do fornecedor em comparação às demais canas adquiridas pela Usina naquela mesma quinzena, partindo-se do histórico da unidade produtiva;

IV.b) ATR Real: neste modelo a Usina paga ao fornecedor o valor correspondente ao teor de ATR apurada na cana dele;

IV.c) Quantidade fixa de ATR: as partes estabelecem, previamente, qual é a quantidade de ATR por tonelada que será paga, independente do teor existente na cana;

IV.d) Valor nominal fixo: é o método mais simples e também o menos usado.

Com exceção do item “IV.d”, as demais formas dependem do preço do ATR divulgado pelo Consecana, entre abril e março do ano seguinte, popularmente chamado de “ano-safra”. Mensalmente é feita a divulgação de um preço provisório, a partir de uma complexa metodologia baseada nos preços de mercado do açúcar e etanol e mix de produção (da Usina ou Estado), que é consolidado no último mês do período e divulgado, assim, o preço final.

Quanto a época do pagamento, é comum estabelecer que parte do pagamento (%) ocorrerá no mês subsequente ao da entrega da cana, conforme preço do ATR acumulado até aquele mês, e o restante será pago entre janeiro e abril do ano seguinte, conforme as divulgações de preço forem ocorrendo, até que seja consolidado em março.

V) MODELOS DE NEGÓCIO

A partir destas abordagens sobre os principais itens do contrato, quais sejam a coisa e o preço, passaremos a tratar dos 03 (três) principais modelos de contratos de fornecimento, surgidos a partir do modo de entrega da cana à Usina e da parte responsável pela realização da colheita, do transbordamento e do transporte da cana (‘CTT’), cada qual com a sua especificidade. E são eles: V.i) cana em pé; V.ii) cana embarcada; e V.iii) cana na esteira.

V.i) Cana em pé

Neste contrato o fornecedor é o responsável pelo preparo, plantio e os tratos no canavial, ficando a Usina responsável por todo o CTT, descontando-se este custo do valor a ser pago ao fornecedor. Este decréscimo pode ser fixado em percentual (%), em quilos de ATR ou em valor fixo, mas precisa, acima de tudo, ser claro que refere-se aos custos com o CTT, sob pena de caracterizar prestação de serviços e gerar autuações tributárias.

Via de regra, a época de colheita é definida pela Usina a partir da variedade de cana plantada, aliada ao planejamento feito com ajuda de software, tal como o ICOL.

A propósito da época de colheita, recomenda-se que o contrato preveja se haverá uso de maturador na cana ou não, notadamente se a cana for colhida no início da Safra.

E isso porque o maturador estabiliza o crescimento da cana e atua no seu amadurecimento, aumento do teor de ATR. Embora a perda de crescimento seja compensada com a menor quebra de produção entre os anos do ciclo, o fornecedor pode sofrer prejuízo com este efeito agronômico, dependendo da forma de fixação de preço adotada em contrato.

V.ii) Cana embarcada

Enquanto no contrato ‘cana em pé’ a Usina faz todas as atividades do CTT, neste modelo o fornecedor faz a colheita e o transbordamento (CT), cabendo à Usina apenas o transporte da cana (T) do campo para o parque industrial.

Muitos aspectos sofrem alteração entre um e outro modelo, a começar pela definição da época de colheita e entrega, que geralmente é feita em comum acordo das partes, conforme cronograma agroindustrial da Usina.

Importante estabelecer em contrato, também, a cadência de colheita e entrega, que normalmente será ditada pelo limite operacional da estrutura do fornecedor, aliada ao cronograma produtivo da Usina.

Mas este contrato precisa ter uma cláusula vital: regras sobre as impurezas vegetais e minerais, o que normalmente é esquecido pelas partes e pode gerar conflitos ao longo da sua execução.

É que, como o CT será realizado pelo fornecedor, eventual deficiência técnico-operacional contaminar a cana com palha, capim e mato (impureza vegetal) e/ou terra e pedra (impureza mineral), causando graves problemas ao processo industrial (buchas, p.ex.), além de desperdício de recursos logísticos no transporte da cana.

E se o preço for apurado em quantidade fixa de ATR, o prejuízo da Usina pode ser ainda maior, pois pagará pelos quilos de impurezas recebidos.

V.iii) Cana na esteira

Neste modelo o fornecedor realizada todas as atividades agrícolas da cadeia, desde o preparo e plantio até o transporte da cana até o parque industrial.

Reitera-se nesta modalidade as observações do item anterior sobre a definição da época de colheita, sobre a cadência de colheita e entrega e também sobre as previsões de impurezas minerais e vegetais.

Neste modelo de contrato é importante analisar previamente se a frota do fornecedor, notadamente as carretas, é compatível com a estrutura de recepção de cana da indústria.

Ademais, nos modelos cana embarcada e cana em pé o preço pode ser formado de forma conjugada. Por exemplo, para cada tonelada de cana entregue serão pagos 98 kg/ATR, acrescido de R$ 24,00.

VI) COBRANÇA E EXECUÇÃO

Por derradeiro, podemos afirmar que há divergência jurisprudencial sobre a força executiva dos contratos de fornecimento de cana, notadamente quando o instrumento contratual não contiver, em si, todos os elementos necessários para a liquidação da dívida.

No TJSP há decisões dizendo que o fato do preço do ATR ser um fator externo ao contrato, divulgado por entidade não-governamental retira a certeza e liquidez do título, extinguindo-se a execução e remetendo as partes à ação monitória ou cognitiva, o que pode gerar prejuízos ao fornecedor.

Novamente sem a pretensão de esgotar o tema, abordamos aspectos jurídicos com impacto operacional nos contratos de Fornecimento de Cana, permanecendo sempre aberto a ideias, sugestões, críticas construtivas e contribuições pelo e-mail.

José Roberto Reis da Silva – Advogado

OAB/SP 218.902