A mulher do caso abandonado?

Nas últimas semanas, muito tem se falado sobre o caso da Mulher da Casa Abandonada, uma história contada pelo jornalista Chico Felitti em um podcast narrativo da Folha de São Paulo. Os relatos trazidos à público por Felitti causam indignação e desconforto para quem se envolve com a história da tal da Mari, que na verdade, é Margarida Bonetti, uma brasileira nascida em berço de ouro, acusada junto ao seu marido, Renê Bonetti, de manter uma empregada doméstica, também brasileira, por 20 anos nos Estados Unidos em condições análogas à de escravidão.

Se você ainda não se deparou com essa história, a pessoa que lhe escreve faz fortes recomendações para que busque descobrir mais sobre o assunto. Mas em suma, para o bom deslinde desse texto, Margarida e seu marido mantiveram uma brasileira trabalhando na residência do casal nos EUA sem direito a salário ou qualquer auxílio médico, dormindo no porão da casa, sofrendo inclusive atos de tortura, como privação de comida e queimaduras com água quente.

Mas a indignação que paira sobre a maioria de nós me parece ser a mesma: se todos sabemos do paradeiro de Margarida, uma casa abandonada em Higienópolis, com logradouro certo, por que ela não pagou até hoje pelos crimes que cometeu nos EUA?

A questão resvala em institutos do Direito Penal, Constitucional e Internacional. Por ter cometido crime em solo americano, tipificado pela jurisdição local, Margarida poderia ter sido julgada nos EUA, caso não tivesse fugido para o Brasil, pois há um instituto no direito americano que proíbe o julgamento de réu não presente, ou seja, “à revelia”.

E se alocando no Brasil, Margarida dificultou muito as coisas para a justiça americana. A soberania nacional impede que o FBI execute a lei penal aqui, pois apenas autoridades brasileiras teriam essa jurisdição. Também não se poderia pedir a remoção de Margarida de volta aos EUA, pois nossa Constituição Federal, art. 5º, LI, proíbe a extradição de brasileiros natos.

No caso, a solução seria que os EUA tivessem solicitado “ajuda” ao Estado brasileiro, por meio de um acordo de cooperação internacional, para que o processo dela tivesse tramitação e julgamento no Brasil, ao menos para a reparação dos danos causados à vítima. Todavia, não temos registros sobre a existência ou não dessa solicitação.

Fato é que, ainda que sem a solicitação, não haveria óbices à instauração de um processo penal no Brasil contra Margarida, em nome da cooperação internacional, por se tratar de cidadã brasileira que cometeu crime tipificado pelo nosso ordenamento, contra outra cidadã brasileira, ainda que em solo estrangeiro. Contudo, além da complexidade do procedimento legal, o tempo cuidou de apagar qualquer vestígio de punibilidade, de modo que 22 anos após a descoberta dos crimes, qualquer punição estaria prescrita pela nossa lei penal.

Seja a forma que olharmos para a situação, tudo indica que Margarida não só se tornou a famosa mulher da casa abandonada, mas também do caso abandonado.

Giuliane Restini Vecchi Marques

OAB/SP  424.476